domingo, 3 de julho de 2011

Relato de parto


Ser responsável significa designar alguém capacitado para gerir suas escolhas? Ser responsável não deveria ser ter consciência dos processos aos quais se submete e optar por eles estando devidamente informado?
Julia e Gabriel são um casal irresponsável. Decidiram ter um filho e, sabendo que Julia teve uma trombose venosa profunda na perna esquerda em 2002, depois do parto cesáreo de seu filho, procuraram o pré-natal de alto risco do hospital universitário Pedro Ernesto (HUPE).
Em 2002, todo o pré-natal foi realizado dentro dos padrões: exames em dia, um ganho de peso acima do comum, mas com a PA e a glicemia controladas, sem riscos. Julia só não sabia o que ia acontecer, como ia acontecer, o que poderia sentir, quanto tempo duraria, quais eram os sinais de que se iniciava o trabalho de parto. Saiu um pouco do tampão mucoso, Julia foi ao hospital onde a internaram com ocitocina na veia e 10h depois se fez a cirurgia. Além dos traumas óbvios por não ter participado do momento de seu parto, por só ter visto o seu filho ao acordar no dia seguinte, por ter sido negligenciada em informação, afeto e apoio, não cabe estender o relato do passado. Apenas dizer que, sem saber sobre as condutas do puerpério, Julia tinha medo de andar, repousou mais que deveria e fez um edema que foi tratado como TVP (heparina e anticoagulante oral). Meses depois, realizou o Doppler que não constatou a TVP, suspendeu o tratamento e nunca mais teve problema semelhante.
Oito anos depois, grávida de cinco semanas, iniciou o pré-natal realizando todos os exames e condutas padrão para o suposto caso. Mensalmente, chegava à consulta, checava peso e exames e era encaminhada a retornar em quatro semanas. Por volta da 30ª semana, recebeu o diagnóstico que excluía riscos para o bebê (não tinha lúpus, nem SAF, nem nenhuma outra síndrome que justificasse a possível – mas não diagnosticada – TVP, e as cinco ultrassonografias com Doppler que realizou não apontavam nenhum risco).
Neste momento, Julia lembrou-se de uma amiga que pariu na água e posteriormente tornou-se doula. Lembrou da paixão com que ela falava de seu parto e de como as mulheres devem se preparar para ele. Em sua condição social, ficava difícil assumir os custos de um acompanhamento com doula. Acreditava, ainda, que a cesárea anterior limitaria suas chances de ter um parto por via vaginal. Mas queria se informar, conhecer as salas de pré-parto do HUPE, mobilizou as mulheres do pré-natal a solicitar uma visita, a conhecer os procedimentos realizados como rotina na unidade, a entender como poderia ser o momento do parto. Na suposta 38ª semana de gestação, recebeu uma resposta da doula Gisele que, em uma visita, informou o casal sobre muitas questões. Deixou vídeos, slides, bola suíça, óleos, perguntas a levar para o HUPE e a expectativa de um parto orientado pelas escolhas do casal.
Julia retornou ao pré-natal perguntando sobre os procedimentos de rotina (episiotomia, indução com ocitocina, posições de parir, intervenções no bebê). Não havia resposta para todas as perguntas, nem sequer o conhecimento de todas as questões, portanto, Julia percebeu que não se tratava de um serviço especializado em parto e sim de um serviço de excelência em acompanhamento de gravidez de alto risco. Julia, pela suspeita de TVP em 2002, havia garantido seu direito a permanecer assistida na unidade, mas chamavam sua atenção por ter suspendido o AAS por conta própria. Julgava que, sem riscos e sem a confirmação do episódio anterior, a medicalização era desnecessária. Neste momento, surgiu, pela primeira vez, a ambiguidade do conceito de responsabilidade. Sem nenhuma intercorrência clínica que justificasse a medicalização e com uma azia que só passava com mais medicamento (omeprazol), Julia fez uma escolha pela qual se responsabilizava: comunicou aos médicos e à família que não ia tomar remédio. Logo, era irresponsável.
Com a chegada da 39ª semana e uma ansiedade absurda (o bebê já podia ter nascido há duas semanas!), Gisele indicou a enfermeira obstetra Marilanda Lima. Foi amor à primeira vista. Foi a certeza de que parto é saúde e não doença, parto é cura e não trauma, parto é nascimento (de uma criança, de uma mãe, de um pai, de uma família, de um lar). Em uma visita, as questões que ficaram pendentes em 12 consultas de pré-natal se esclareciam. A paixão pela mulher que a ajudaria a parir aumentava. Todo o medo, a dor, a culpa, a dúvida eram substituídos pela paixão.
Gabriel comprava a idéia e era presente sua opinião em todo o processo. Iniciava-se o parto com todos os envolvidos devidamente cientes do que poderia acontecer e apaixonados pelo momento que se aproximava... Se aproximava... 41 semanas e o HUPE (sem examinar) encaminha Julia para a internação. Marilanda examina Julia e diz que o colo não é de 41, mas de 39 semanas no máximo. Pede uma ultrassonografia e, neste momento, todo mundo enlouquece. Já era para ter nascido há três semanas! Pode morrer a qualquer momento! Vocês não podem fazer isso! O obstetra amigo de não sei quem disse que não pode esperar mais! Nenhum dos palpites vinha respaldado em exames clínicos de Julia.
Marilanda propõe uma sessão de psicodrama. Julia caminha pela sala e para numa postura que mostre o que pode atrapalhar o parto. Julia deita no chão e estende os braços. Imediata e compulsivamente começa a chorar, soluçando, e é amparada por Marilanda. Marilanda pede que Julia mude esta cena, mas Julia trava. “Eu faria assim: poria-me de cócoras e daqui ninguém me tiraria.” Julia entendeu, e acredita que a posição de cócoras tenha um significado para a parteira e para muitas outras mulheres, mas dentro de si, não sente conforto nesta posição. Sabe que não vai parir de cócoras, mas sabe que deveria ousar ao pensar nas posições de parto. Possibilitar ao seu corpo uma posição mais ativa. Entende a questão, mas não a resolve.
Julia, em casa com Gabriel, dançando ao som de pontos de umbanda, num apaixonado ritual de despacho, ateou fogo à carta de internação do HUPE.
A ultrassonografia mostra normoidramnia, placenta grau II, apontando para uma gestação de 37/38 semanas. Nenhum dado clínico sugeria sofrimento fetal, apenas uma data provável de parto divergia duas semanas a cada profissional que fazia a contagem. Confiariam num profissional que traz no carimbo o talo duma instituição respeitável ou se lançariam ao entendimento das questões ali postas com dados e exames a cada dois dias aferidos? Os irresponsáveis, mais uma vez, tomaram as rédeas das suas vidas!
Às 40 semanas e 2 dias (ou 41 e 6 dias), Julia acorda às 6h com contrações e sente o tampão mucoso sair. Acorda Gabriel que diz: “Amor, é o tampão!” Ele sabe o que é, leu, se informou, participou de todo o processo e já é pai muito antes de assinar qualquer papel. Ligam para a parteira, ela chega, examina, informa sobre o processo, orienta a caminhar, namorar, e diz que volta às 18h. Contrações mais ritmadas, colo mais apagado e 3cm dilatado, Marilanda propõe outra sessão de psicodrama. Julia caminha pela sala. Pensa no seu trabalho de parto, nas suas escolhas. Faz uma expressão que represente o que a impede de prosseguir. Abaixou-se num canto, só. Culpava a mãe, dizia que estava reproduzindo, que aquela não era ela, mas é claro que era. A Julia irresponsável sabia da sua responsabilidade. Sabia da solidão de assumir os riscos das suas escolhas. E os medos. A todo momento estava presente o fantasma do conforto de uma cesariana: pegar o carro, em 15min entrar na maternidade e em três dias voltar para casa com o bebê. Conforto, porque é uma escolha universal, institucionalmente homologada coberta de razões. Conforto de assumir uma postura passiva e deixar-se ser o que não se quer, para depois poder culpar a vida, a sorte, deus. Ao mesmo tempo, o desconforto de fugir de si mesma, de deixar que escrevam sua própria história e crenças. “Agora faça uma postura para mudar esta.” Julia abraçou Gabriel, chorou. Ele disse que estava com ela, que a apoiava. Não era isso. Mas funcionou. Julia viu que não estava só, havia o companheiro e a parteira que dava também o crivo institucional à decisão irresponsável. Em todos os momentos buscou nos olhos de Marilanda este selo e encontrou.
Daí pra frente, entrou e saiu do transe do parto alternando medo (sentada no sofá) com vontade de parir (dançando, na bola suíça, de quatro). A dor nas costas a levava a querer apoiá-las, não adiantava massagem. O momento da dor gerava uma paralisia que Julia reconhece como despreparo físico e psicológico. Sentia um medo enorme de morrer de dor, daquela dor não ser normal, achava que os olhares de Gabriel, da doula Ana e da fotógrafa Adriana não eram firmes. Buscava alguma fraqueza no olhar de Marilanda. Aquele olhar firme a fazia encontrar dentro de si as respostas que já tinha. “O processo é seu e está em suas mãos. Eu sei disto e estou aqui.” Era isso o que diziam os olhos da parteira.
Julia entrou na piscina. Sabia que só deveria entrar na água no período expulsivo, então imaginou que estava acabando. Relaxou. A água quente relaxou os músculos da lombar, dos ombros (que tensionavam a cada contração). Quando veio a primeira contração na água, veio mais forte que antes, pois pegou os músculos relaxados, e voltou o desespero. Julia lutava para mudar de posição, mas ficava sentada na piscina, não tinha tempo entre uma contração e outra para se movimentar. Tentou ficar de quatro, de lado, acocorada, mas a borda da piscina tocando suas costas dava uma sensação de amparo da qual não podia abrir mão. Gabriel entrou na piscina a pedido de Julia, que logo desistiu da companhia, pois com ele tinha ainda menos espaço para tentar se movimentar. Pediu para chamar Marilanda e disse que não estava aguentando mais, que não ia conseguir. A parteira a examinou e foi firme: “Escuta aqui, eu não vou te levar pro hospital. Você vai parir aqui.” Julia percebeu que aquele era o momento da decisão, que ir ou ficar significava tomar as rédeas da situação e responsabilizar-se pelos resultados.
Marilanda examinou Julia uma última vez e disse que, ali na piscina, o parto poderia levar mais umas duas horas ou meia hora caso se deitasse para ela rebater um colo... Na verdade, Julia só ouviu “2h X 30min”. Toda aquela entrega à dor transformou-se em um ímpeto de finalizar aquilo tudo. “Lá está pronto para mim? Preparem a cama com Adult Care, vou levantar quando estiver tudo pronto.” Julia, com muita força de vontade (mas graças à força de Ana) pôs-se de pé e foi para a cama.
Não conseguiu adotar nenhuma postura lida nos manuais de parto ativo. Nem deitar-se de lado, pois suas pernas já não respondiam mais. Toda a sua vitalidade estava nos pulmões, no diafragma, no útero, no períneo ótimo e na mão de Gabriel. O parto aconteceu na posição que Julia não queria antes de conhecer seu corpo e seus limites: deitada. Empurrava sem gritar, concentrando as forças para atravessar a barreira da dor. Entre as contrações, ouviu parteira pedir à Ana que apoiasse o bebê para que não subisse. Julia não achou invasiva a manobra, pois sabia que a posição que escolheu gerava esta dificuldade.
“Estou vendo a cabeça, ela é loirinha! Quer tocar?” “Não!” Julia queria fazer força. Julia sente que estar ativa no processo pode e deve ser muito mais do que fez, mas reconhece que, neste parto, fez o máximo que pôde. Não ter adotado outra posição não se deve ao fato do hospital ter um padrão e sim à sua limitação física, à sua escolha. Teve vontade de desistir porque se concentrava na intensidade da dor e não se abria para a infinitude do momento. Em qualquer hospital onde houvesse um anestesista, o processo certamente pararia ali: Julia pensaria na dor, a dor pararia. Julia lembra que doeu. Muito. Mas não se lembra da dor. Entrou na partolândia que, para espanto de quem a conhece, era um lugar sereno, sem palavras, onde sentia os toques da parteira amaciando seu períneo, o cheiro do óleo de coco, as mãos de Ana numa perna e no abdômen, cada veia da mão de Gabriel (sempre presente), a orelha de Lucia passando pelo canal vaginal, o roçar do cordão por todo o períneo, a passagem de cada membro de Lucia, os olhares da doula para a parteira, os cliques da máquina de Adriana, as vozes, a sua respiração, a força que rompia a dor com mais dor e trazia a cabeça narrada por todos ali presentes.
Julia escolheu narrar sua própria história em terceira pessoa por ter descoberto que o mundo elege o discurso alheio como legítimo. A irresponsabilidade de Julia e Gabriel deu à luz Lucia Rosina Pastore Martins, às 5h36 do dia 27 de junho de 2011, com 40 semanas e 3 dias (ou 42 semanas, de qualquer modo, a termo) com 4100g e 54cm, APGAR 8-10. Lucia foi amamentada nos primeiros 10min de vida. Julia não sofreu lacerações no períneo e nenhuma intervenção foi necessária. A família dormiu na cama onde Lucia foi concebida e nasceu. Os parentes que estavam com medo puderam visitá-la no dia em que nasceu, pegando-a dos braços da mãe que já conversava, andava, sentava.
Às 5h, o avô materno de Lucia, na Ilha do Governador, acordava para fazer sua oração matinal. Espiritualmente, teve contato com sua avó Rosina, muito religiosa, que pariu seus filhos igualmente em casa. E a tia do Gabriel, antes de saber que Julia estava grávida, teve um sonho com sua avó, também Rosina, que segurava uma menina nos braços. No instante do parto, Julia recebeu sua filha no peito com o cordão ainda pulsando, olhou para Gabriel e disse: "vamos chamá-la Lucia Rosina, amor?" Ao comunicarem à família a escolha do nome, e o momento desta escolha, tiveram certeza de que foram somente um canal para que se cumprisse algo que seu entendimento pouco pode alcançar.


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