sábado, 30 de janeiro de 2010

apenas isso

dentro de mim um assassinato de idéias e amores
e um telefonema
(gozado como os assassinatos são voláteis e as idéias sempre cruas)
madurei

dentro de mim de novo o gozo infantil e correspondente
- oi, meu amor!
e meu sorriso cai de novo trôpego de identidade e calmaria

dentro de mim a espremida categórica de pesos, medidas, incensos
outro telefonema
(houvesse algo consciente a perceber estaria se rindo todo)
- diz, meu amor...

bobagem essa coisa toda
apenas isso, que eu não vou conseguir mesmo dizer, apenas isso
olha só que bom

quarenta anos

Quarenta anos é demais pra uma mulher. Prefiro quarenta e dois. O Papa tá passando pito nos jesuítas; plantei um pé de samambaia que não vai pra frente de jeito nenhum. Galinho garnizé é galinho à-toa, atrevimento empenado. Quem sofre convulussão, se for de excesso epinético, pode olhar que fez misturada de manga com goiaba. O açougueiro e sua faca me expulsam, porque eu não tenho santidade, eu não sou digna de pôr meus pés no lugar mais deprimente do mundo. Quando quero ficar humilde eu visito os açougues, entro de um em um, pra ver as mulheres de chinelo de borracha, apertando os pedaços com aqueles dedos grossos que não merecem anéis. Se eu não ficar doida, é saúde demais. As testemunhas de Jeová distribuem grátis seus folhetos apologéticos, mas a Igreja católica, que eu adoro, é dureza. Caso me dessem audiência ia sair humilhada, precisando de calmantes, porque iam me massacrar com respostas perfeitas. Tivesse coragem, começava do zero, mas como dizia meu pai, gente de orelha grossa é preguiça pura. Mais que faço é almoçar a jantar muito bem e borrar de medo de tudo. Escola é uma coisa sarnenta; fosse terrorista, raptava era diretor de escola e dentro de três dias amarrava no formigueiro, se não aceitasse minhas condições. Meu menino tem a cabeça ruda, profissão boa pra ele é de mecânico. Quando acabarem as escolas quero nascer outra vez. Sou didática, catequética, apologética, por isso não tenho um minuto de sossego, pego o dízimo de tudo. Quem viaja a jato acha que põe o mundo no bolso, ilusão fugaz. Minha mãe nunca foi em Belo Horizonte e a vida dela foi um microcosmo. Deus é tão bom, imagina que fez minha tia Hilda morrer, exatamente agora, quando precisava de dinheiro, eu, que sou a única herdeira dela. Fez os inquilinos de Jorge passar fintão nele, até ele aprender a deixar de ser sovina e dar o barracão pra nossa filha morar. Matou de desastre o Orlando e a Cleonice, mas me curou da dor de escadeira pra eu poder criar os cinco filhos deles. As irmãs carmelitas me incomodam demais e médico parece que tem o rei na barriga. Tem um escritor tão ruim, ler livro dele é como entrar nos açougues. Em matéria de amor, ainda invento. Festa, não. Quero morar na roça ou em cidade pequena onde as mulheres são faceiras, depois casam, depois põem o cabelo pra trás da orelha e desgraçam a fazer biscoito de polvilho, sulcam a cara no tacho, no forno, na cama, pra agradar marido, agradar neto. Se for, me avisem. Tem coisas que, sabendo dizer, conferem muita importância: “a sagrada rota”, “as valquírias”. Falar comigo: seu texto é muito bom, eu não acredito, porque escrever assim é sopa. Agora, falar que é ruim, me incomoda e é capaz de eu sofrer. A poesia existe, ou é falácia, pruridos, psicologismos? Se assim for e eu descobrir, me epitafiem: desgraçada, fora da graça, banida. Onde está Castro Alves que ia fundar comigo uma dinastia e morreu antes, de gula e pressa? A mulher de Dom Pedro sofreu humilhações e não teve importância? Então o Imperador do Brasil pula muros e as coisas continuam do mesmo jeito? Só movi dez dedos pra minha filha ser rainha do inverno, ela foi só princesa. Nenhuma de nós sofreu porque aquele não é o modo de no-nos dizermos eu te amo. Deus sublunarie non curat. Se não derem um jeito no padre Quevedo explicando tudo à luz da parapsicologia, o catolicismo no Brasil se esfarela. Como é que eu vou viver num mundo onde as coisas se parecem a seus nomes? Com Guimarães Rosa, não, é incesto. Tem gente de primeira, de segunda e de terceira e os marginais, todos de primeiríssima. Que olhos de fogo têm os presos! Visite uma cadeia em Medellín: “Señor, señor” você fica sem relógio, sem caneta, sem uma resposta no bolso. “Marisol, Mariso-ol”, eles gritam no pavilhão dos homossexuais. Quantos anos tem a humanidade? Que estou eu fazendo que ainda não desviei aviões, dinheiro, vendi meu corpo a preço de banana? O tempo ruge. Quero vender é a alma, virar comerciante, plantar dois mil pés de laranja, comprar adubos, arranjar um caminhão pra pegar as frutas na chácara e levar pra São Paulo. Faço dupla sertaneja, tenho um programa no rádio e só canto música da minha autoria. As mulheres me olham é da cintura pra baixo, a vida é uma maravilha, não fosse a velhice. Juventude de espírito eu não quero, acho muito ridículo a alma fazendo trejeitos. Já viu mangueira velha? É assim que eu quero. Do ponto de vista biológico a morte é naturalíssima. Mas e o olhar que me puseram quando eu fiz treze anos? E o absoluto desapontamento do homem que foi na cidade grande e entrou por engano no banheiro de ELAS? E o meu lábio tremendo quando tive que explicar pra superiora: Não trouxe os dez cruzeiros porque o pai este mês só recebeu a metade. O médico falou comigo: não coma sal se quiser viver mais. Peco, se comer assim mesmo? Os cemitérios da minha terra não dão vontade. Eu quero é o seio de Deus, quero encontrar Abraão e me insinuar junto dele, até ele perder o juízo e me fazer um filho que terá muitas terras e ovelhas. Emancipada eu não quero ser, quer ser é amada, feminina, de lindas mãos e boca de fruta, quero um vestido branco de rendas e um cabelo macio, quero um colchão de penas, duas escravas negras muito limpas e quatro amantes: um músico, um padre, um lavrador e um marido. Quero comer o mundo e ficar grávida, virar giganta com o nome de Frederica, pra se cutucar na minha barriga eu fredericar frutas, água fresca, as pernas abertas, parindo. Por dentro faço mel como colméias, põe tua língua no meu favo hexágono. As quatro vias são de Santo Tomás, santo opulento e sábio. Eu tenho a via-crucis e a via-láctea. A via Dutra é mortal, a via Mão não dá pé. Quem dá o grito primal paga caro o analista, quem dá o grito vai preso, quem escreve feito eu esgota o zumbido de seu ouvido, mata um a um os marimbondos, com agulha fina, nos olhos. Não posso ver trouxa frouxa, amarro até ficar dura.

Adélia Prado

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

anunciação










......................pirassunungamente, brindemos

sabe lá deus quando olhei pra baixo e vi
os quatro pés no mesmo passo
picolé pros meninos
trocando ao sol os pés que se tocam à lua

sabe lá deus o que era de dentro de mim
quando eu o circundei com a minha língua
assim, assim sim, que assim seja
o sorriso tecido pela flor única do asfalto
sua pétala que me leva no céu

sabe lá deus e eu nem precisava
mas ele me enviou um anjo


deus enviou

eu te amo e este
não é aquele que é meu e vai ao outro
eu te amo e este
é um dos dias em que me comunico
eu te amo e este
desconforto no meu ombro é reflexo do quanto
eu te amo e este
calo no meu dedo da aula de violão
eu te amo e este
não acaba como todos os que foram até mais
eu te amo e este
poema é de gratidão e afeto e remédio
eu te amo e este
é o melhor lugar pra dizer

bom dia, meu amor
eu fiz o teu café machista

*************

as coisas dizem
sem tentar dizer
e tudo vai dito
a quem possa ver.
o mundo que passa
não se pode ver
o passo
o tapa
o acerto
as coisas dizem a sós
as coisas dizem a
as coisas dizem
as coisas
as

sábado, 16 de janeiro de 2010

renova elas no samba

quando lembrei da água pelo joelho
(a gente prometeu passar um álcool e hoje riu)
percebi a força que a vida tem nas palavras.

percebe.
ontem centro samba chuva tanta gente ali.

a tempestade era uma coisa ruim
o centro da cidade era feio e sujo
e vazio
a minha liberdade de escolha era faca
e o amor não era.

percebe agora os meus olhos
e a luz que essa coisa toda me trouxe.

creio que agora ele é.